Por Irka Barrios
Confesso que me custa aceitar o fato de que a mesma sociedade inglesa que presenteou o mundo com alguns dos artistas que mais amo é (desde sempre) uma senhorinha conservadora. Eu nunca reservei a devida atenção para o caso, talvez por falta de um conhecimento mais aprofundado ou porque me mantive um longo tempo em fase de negação.
Mas a verdade é que o conservadorismo dos ingleses não é bem uma novidade: eles mantiveram uma lei que punia comportamentos homoafetivos até os anos 1950. Figuras célebres como Oscar Wilde e Allan Turing sofreram os rigores desta lei arcaica. Então, sim, me dói admitir que a mesma sociedade que pariu Mary Shelley, David Bowie, Elton John e tantos outros artistas, rejeitava homossexuais ao mesmo tempo que sustentava, e ainda sustenta, os luxos de uma família real.
O recém-lançado filme Censor aponta seu foco para a censura que a sociedade inglesa impôs ao dito cinema experimental, muito popular nos anos 1980. Na obra, Enid, uma funcionária do governo, trabalha assistindo a diversos filmes em VHS, os chamados video-nasties, um movimento artístico (ou nem tanto) que teve grande produção e distribuição na época.

Não é um trabalho fácil, sua função é assistir a cenas grotescas de violência extrema que incluem estupros, decapitações e os diversos tipos de torturas que os personagens sofrem. Tentando manter o profissionalismo, Enid busca censurar e até banir as produções que considera nocivas ao público espectador. Convence-se de que seu trabalho é essencial: “eu protejo as pessoas”, Enid confessa durante um jantar na casa dos pais.
Não é uma premissa exatamente nova, nos tempos do auge dos Romances Góticos, também muito populares, críticos consideravam que aquelas obras transformariam o leitor num louco ou assassino.
O conflito do filme se mostra, entretanto, com o escândalo sobre um cidadão que, após assistir a um filme liberado por Enid, executou um massacre imitando as cenas ficcionais. É o estopim para iniciar a pressão da imprensa conservadora, bem como desconfianças dos colegas de trabalho que passam a desrespeitar suas opiniões e considerá-la descolada da realidade.
Qual o poder de uma obra de ficção sobre o caráter e as atitudes de uma pessoa? E qual deve ser o poder do Estado ao pré-selecionar o que podemos ou não consumir? São perguntas que rondam o filme do início ao fim.
Mas, tratando-se de um video-nastie, responder a estas perguntas pode ser um caminho acidentado. Algumas produções não levavam em consideração qualidade estética ou conceitos éticos, explorando, inclusive, o sofrimento real das pessoas. Além disso, há outra questão relevante: como eram distribuídos sem qualquer indicação restritiva de idade, crianças podiam, com facilidade, alugar e assistir a conteúdos reservados somente para o público adulto.
A partir de seu drama pessoal, Enid penetra, como uma criança ingênua, na fantasia que mistura a irmã, desaparecida desde a infância, e a atriz de um dos filmes que precisa analisar. É o suficiente para que embarque numa alucinação sem retorno.
A direção da estreante Prano Bailey-Bond reproduz homenagens aos famosos filmes do gênero dos anos 1970 e 1980. As cenas mais aguardadas, de carnificina e muito sangue, são poucas, o que pode resultar numa decepção para os fãs do gênero.
Para quem, como eu, prefere deixar o imaginário ocupar as lacunas, o filme não atravessa o limite do gore. Mesmo assim, não empolga muito. Considerei a experiência como um excelente fan service.
Há uma enorme confusão, manipulação, sobre o conceito conservador instigado por algumas facções ditas liberais, assim como ocorre no conservadorismo. Faz-se necessário um discernimento.
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